Monumento a Federico Garcia Lorca

Crônicas criminosas de um monumento

Isis Kanashiro J. A. Soares

Quem passa pelo monumento a Federico García Lorca, instalado entre as árvores de uma praça em um bairro nobre de São Paulo, provavelmente não imagina a quantidade de memórias das que ele carrega. Confeccionado por tubos de ferro e chapas de aço, possui uma forma de difícil descrição; não é um busto, não é uma estátua equestre, nem um tipo de fonte ou obelisco. É uma das poucas esculturas projetadas pelo artista Flávio de Carvalho que foram realizadas e apresenta os traços abstratos do pintor materializados em sua estrutura. Feito de um desenho composto por linhas escuras e formas irregulares coloridas, foi pensado para ser instalado em 1968 na Praça das Guianas, no bairro do Jardim Paulista, e homenagear o poeta espanhol Federico García Lorca.

A iniciativa para sua construção partiu do Centro Democrático Espanhol, composto por espanhóis exilados no Brasil, que tinham García Lorca como um símbolo político e de resistência. O poeta foi assassinado em 1936, em meio à Guerra Civil Espanhola, após sofrer duras perseguições por conta de sua orientação sexual e afinidades políticas. Mesmo após sua morte, García Lorca continuaria a resistir, incomodando alguns e gerando mobilizações grandiosas por outros, através de seus legados e, como se trata nesse texto, suas homenagens.

Os eventos marcantes, que compõem a trajetória movimentada dessa obra, tiveram início meses após sua inauguração. Em plena ditadura militar, no ano seguinte da instalação da estrutura (1969), a Praça das Guianas apareceu repleta de destroços espalhados por seu canteiro em uma manhã de julho. O monumento havia explodido devido uma ação criminosa organizada pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), e dele só restaram suas sucatas. Junto às peças, encontravam-se folhetos dispersos com os escritos ‘comunista e homossexual’. Após o ataque, os destroços da obra foram transferidos para um depósito da prefeitura. Dois anos depois, Flávio de Carvalho restaurou a própria obra, que foi reinstalada no Parque do Ibirapuera. Como nada é tão simples, após protesto do embaixador franquista da Espanha contra a presença do monumento no parque, a escultura foi levada a outro depósito municipal e lá permaneceu por mais tempo.

Ao final dos anos 70, quase vinte anos depois, iniciou-se o segundo arco da história desse monumento. Fernando Meirelles, aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, ao conhecer a história da obra em uma aula sobre ‘Flávio de Carvalho e o expressionismo’, teve a ideia de ‘roubar a escultura e devolvê-la à cidade’. Junto a um grupo de amigos da universidade, o estudante foi até o depósito onde se encontrava a obra, em Cotia (Região Metropolitana de São Paulo), com documentos falsificados e uma caminhonete emprestada. Depois de conseguir enganar o funcionário da prefeitura, os amigos voltaram com a obra para a FAUUSP e, no pátio interno da faculdade, a restauraram durante três meses sem que ela incomodasse ou fosse notada pela direção. No fim desse período, com a obra limpa e tratada, foi decidido pelos estudantes em assembleia que seu destino final deveria ser o vão livre do MASP.

Na madrugada anterior ao aniversário de 150 anos de São Paulo, quando a Avenida Paulista seria interditada para a festa da cidade, os estudantes carregaram a escultura na mesma caminhonete até o MASP. Com novos documentos falsos, convenceram os policiais de que faziam parte da organização do evento e que a instalação da estátua no vão era parte das comemorações. Então, retiraram os paralelepípedos da praça do museu, onde chumbaram o monumento. No dia seguinte, após repreensão de Pietro Maria Bardi, então diretor do museu, preocupado com a integridade do patrimônio sob sua responsabilidade, o grupo de estudantes foi surpreendido pelo prefeito que, chegando ao local, afirmou ‘não há o que fazer, a cidade aceita’.

Depois do episódio, o monumento foi retirado do MASP e retornou à Praça das Guianas, sua primeira casa, onde se mantém até os dias de hoje.

Referências

  1. Lais Modelli. A saga da escultura desaparecida na ditadura e resgatada em ‘ação cinematográfica’ por alunos da USP. BBC, 2017.
  2. Cidade de São Paulo. Homenagem a Garcia Lorca, por Flávio de Carvalho. 2010.
  3. Cadão Volpato. Nós que nem roubávamos tanto. Revista Piauí, 2007.

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