Beijo Eterno (Fragmento do Monumento a Olavo Bilac)

Vestiremos todas as outras estátuas nuas da cidade

Karen Steinman Martini

O Idílio, ou Beijo Eterno, é um fragmento escultórico, integrante do Monumento a Olavo Bilac. Composto pela figura de um casal nu se abraçando, composto por um homem branco e uma indígena, o fragmento é um dos monumentos que mais foi instalado e reinstalado por São Paulo, perambulando por um período de 31 anos e colocado em mais de 5 locais distintos. 

Em 1915, Bilac discursou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, defendendo um programa de reforma das práticas políticas nacionais. O episódio inspirou a criação de associações patrióticas, entre elas, a Liga Nacionalista, fundada em 1916, e fez com que o poeta se tornasse uma figura importante para alunos da instituição. Essa relação entre Bilac, a criação da Liga e a Faculdade de Direito explica, em parte, a proeminência do Centro Acadêmico XI de Agosto, organização estudantil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no financiamento da obra.

Após um breve período no qual o monumento foi elogiado após sua instalação em 1922, iniciou-se uma campanha contra a obra e a favor de sua demolição. A campanha contra o monumento a Bilac, nessa fase, tinha mais a ver com motivações políticas e estéticas. Não existem registros de que, na década de 1920, alguém tenha se escandalizado com o fato de a dupla, que era apenas parte do conjunto maior do monumento, estar nua. Em fevereiro de 1935, o jornal a Gazeta anunciou a retirada do monumento da Avenida Paulista em virtude de obras urbanas: “O gesto do prefeito Fábio Prado somente merece aplausos (…)”. Na época, a previsão era de que ele fosse reinstalado no parque D. Pedro II. No entanto, ele foi fragmentado em diversos pedaços que foram levados para o Depósito Municipal da Várzea do Carmo.

Moralismo e rejeição

Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo na época, os fragmentos Beijo Eterno e Caçador de Esmeraldas foram instalados na entrada do colégio estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros. No entanto, pouco tempo depois, o Beijo Eterno voltaria para o depósito, após mobilização de pais de estudantes que consideraram a figura como “imoral”. Em 1953, quando Jânio Quadros, ex-aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, assumiu o cargo de prefeito de São Paulo, resolveu reinstalar alguns fragmentos do monumento e levou o Beijo Eterno para o Largo do Cambuci, um de seus redutos eleitorais. Neste local, mais uma vez, o monumento gerou uma mobilização de moradores do bairro que organizaram um abaixo-assinado para sua retirada, alegando que o fragmento atentava contra os bons costumes. Dez anos depois, em 1966, o então prefeito José Vicente Faria Lima decidiu instalar O Beijo Eterno na entrada do túnel da avenida 9 de Julho, chamado pelo jornal O Estado de São Paulo como “o lugar das estátuas malditas” por agregar um longo histórico de monumentos rejeitados pelo público. Novamente não foi diferente. O vereador Antonio Sampaio, membro da Arena, de porte de um abaixo-assinado organizado por senhoras residentes da avenida 9 de Julho, realizou um inflamado discurso na Câmara, clamando pela retirada da obra vista como  “obra do demônio, um verdadeiro escândalo”. 

A rejeição recorrente da obra, e as reações suscitadas nos diferentes locais nos quais foi  instalada, nos leva a questionar o que compõe esses bons costumes postos em risco pelo monumento, sempre em relação ao seu “teor sexual”.  O monumento, inclusive, se tornou um exemplo costumeiro do docente de Medicina Legal da Faculdade de Direito do Largo São Francisco como indicativo de impotência sexual, “já que o homem (francês) resistia às provocações da sensual mulher sem qualquer reação”. Para alguns pesquisadores, esta rejeição revela uma outra camada de preconceitos presentes na sociedade da época, pelo fato da escultura ser lida popularmente como o retrato de um relacionamento entre uma indígena e um europeu. “Não se tem informação de que o artista queria retratar um beijo inter-racial entre uma índia e um branco, mas foi assim que a obra ficou conhecida. E isso foi tratado de maneira preconceituosa na imprensa. A Gazeta chamou a personagem de ‘bugre’, uma palavra pejorativa para se referir aos indígenas” relata a historiadora Helena Barbuy. 

No entanto, pouco antes da obra ser removida da entrada do túnel da avenida 9 de Julho, em 18 de outubro de 1966, para adentrar os depósitos mais uma vez, ela foi sequestrada por estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e transportada para o ‘território livre’ da Faculdade. Em uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada no dia seguinte à ação, os alunos acrescentam uma ameaça: “se a estátua “Idílio” for retirada do Largo São Francisco, vestiremos todas as outras estátuas nuas da cidade e colocaremos aliança nas que representam pessoas abraçadas”. Para estes, o monumento remetia à própria história da instituição da qual faziam parte, com seu papel na implantação original do monumento, representando também uma atitude de resistência a um discurso moralista presente na sociedade da época, poucos anos após o golpe militar de 1964. Ali, no território livre da Faculdade de Direito a escultura estaria protegida, e é onde ela se encontra desde então. Segundo o jornal universitário a gazeta arcadas, a ação é “um marco histórico para os estudantes da Faculdade de Direito, para lembrarmo-nos do que somos, e do que devemos ser.”

Imagens complementares

Referências

  1. XI de Agosto quer a estátua. O Estado de São Paulo, 19 out de 1966.
  2. ​​Helena Barbuy. As Esculturas da Faculdade de Direito. Ateliê Editorial, 2017. 
  3. Giselle Beiguelman. Da cidade interativa às memórias corrompidas: arte, design e patrimônio histórico na cultura urbana contemporânea. Tese de Livre Docência apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2016.
  4. Amanda Batista Bento. Olhando a cidade: a presença/ausência do Monumento a Olavo Bilac e seus fragmentos. XIV EHA, Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2019.
  5. Guilherme Carneiro. Centenário no Largo. Gazeta das Arcadas, 2020.
  6. Patrícia Santos Hansen. Golpes de Memória: usos políticos de Olavo Bilac no século XX. Revista do IEB, n. 61, 2015.
  7. Fanny Tamisa Lopes. Cenografia e paisagem urbana: um estudo de caso na cidade de São Paulo. Dissertação apresentada à Universidade Estadual de Campinas, 2012.
  8. Leandro Machado. A história da estátua censurada em São Paulo por mostrar um beijo inter-racial. BBC News Brasil, 16 de setembro de 2019.
  9. Douglas Nascimento. Monumento a Olavo Bilac. São Paulo Antiga, 28 de Maio de 2015.
  10. Alberto Luiz Schneider. Entre a História e a Memória: A invenção do bandeirante Fernão Dias Paes e o Mosteiro de São Bento (São Paulo). Universidade Católica de São Paulo, 2019. 
  11. José Fernando Simão. Discurso de saudação aos calouros. Arcadas – Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 12 mar de  2014.