Fonte Monumental

As lagostas, a latrina e a “jóia da cidade”

Marina Brandão.

A Fonte Monumental, localizada na Praça Júlio de Mesquita (antiga Praça Vitória), é de autoria da escultora campinense Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto (1874-1941). Este foi o primeiro monumento criado por uma mulher a ser instalado no espaço público de São Paulo, em uma época de pouca representatividade das mulheres no meio artístico. A obra foi encomendada pela prefeitura, em 1913, no contexto de melhoramentos urbanos e reformas realizadas pelo prefeito Antonio Prado (1899-1911), com previsão inicial para ser instalada na Praça da Sé.

O processo de execução e instalação da obra levou mais de dez anos e foi marcado por atrasos e tensões. Supostos desentendimentos entre a escultora e a empresa italiana Poli Eugenio de Carrara, contratada para execução do monumento, e as consequências da eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) na Europa, são alguns dos fatos associados ao longo tempo de execução da obra citados em pesquisas sobre a fonte. A tensão no processo de execução da obra se evidencia, ainda, com a cobrança da prefeitura para a entrega do serviço por Nicolina, já em 1923, sob a pena de a artista ter que devolver o dinheiro já gasto na obra. Em 1927, quatorze anos após sua contratação a Fonte foi inaugurada. Sua inauguração se deu no mesmo ano em que a Praça Victoria mudou de nome para Júlio de Mesquita, em homenagem ao fundador do jornal O Estado de São Paulo.

A Fonte Monumental é composta por duas bacias de mármore sobrepostas, e apresenta no eixo central das peças, no seu topo, um pescador rodeado por quatro sereias esculpidos todos no mesmo material. A bacia superior é adornada por flores de mármore e carrancas de bronze, e as laterais da bacia inferior são adornadas por conchas de mármore, intercaladas por lagostas de bronze de autoria do escultor Roque de Mingo (1890-1972). As lagostas constituem parte importante da memória afetiva associada à Fonte Monumental, que é popularmente conhecida como ‘Fonte das Lagostas’. Estas chegaram a ser objeto de inspiração para a canção de Adoniran Barbosa e Tasso Rangel, Roubaram a lagosta, de 1970, que faz menção aos furtos pelos quais a fonte passou. Já nos anos 2000, o problema dos furtos das lagostas culminou com substituição das peças originais em bronze por réplicas em resina, sendo as originais guardadas no galpão do Canindé da prefeitura.

Nas redes sociais, blogs e na grande mídia, a Fonte Monumental costuma ser lembrada por sua beleza. Ao mesmo tempo, a maioria das publicações costumam ter um tom indignado sobre o estado de conservação do monumento, em função dos sucessivos atos de vandalismo pelo qual passou a obra. Por exemplo, no sugestivo título do artigo sobre a Fonte Monumental no portal São Paulo Antiga: ‘De monumento a latrina’. Associado a estas críticas, nota-se também a frequente cobrança da atuação do poder público para a ‘recuperação’ da Fonte Monumental. O reconhecimento do problema de conservação e as diversas pressões levaram a prefeitura a dar início à contratação de seu restauro em 2010, com a conclusão das obras em 2013. O projeto de restauro do monumento foi realizado pelo Estúdio Sarasá e as obras foram executadas pela empresa Concrejato, totalizando um gasto de R$ 515.235,92 pela Prefeitura, segundo a publicação da Secretaria Municipal de Cultura, Em cartaz, de 2012. Nesse contexto, foram instaladas chapas de vidro temperado, em uma tentativa de proteger a fonte de atos de vandalismo e furto de suas peças. Não foi a primeira vez que o monumento recebeu algum tipo de barreira para sua ‘proteção’, visto que no anos 1980 foram instaladas grades ao seu redor. Os vidros instalados na última reforma passaram a ser em si alvo de gastos públicos e de conservação. Em 2021, foi aprovado recurso do Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) de R$ 20.000,00 para manutenção da Fonte Monumental.

A presença dos vidros permite questionar a eficiência da instalação de barreiras para a contenção dos problemas de vandalismo. Ao mesmo tempo, possibilita a reflexão sobre o quanto esse tipo de elemento pode contribuir para um descolamento do monumento de seu contexto urbano. Segundo afirmação da então diretora do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), para o jornal o Estado de São Paulo em 2013: “Essa proteção não é uma grade que exclui, mas que provoca uma distância valorativa (…). A fonte será protegida como uma joia da cidade, como uma escultura em um museu”.

A Fonte Monumental, encomendada para o embelezamento de São Paulo no contexto de melhorias urbanas da ‘belle époque paulistana’, escancara os problemas sociais do centro da cidade, isolando atrás de chapas de vidro, frequentemente trincadas, o imaginário de uma São Paulo européia que contrasta com a realidade marcada pela desigualdade.

Referências

  1. Cidade de São Paulo. Ata de abertura Contratação de Projeto de Restauração da Fonte Monumental implantada na Praça Júlio Mesquita, República, São Paulo-SP.
  2. Cidade de São Paulo/Secretaria Municipal de Cultura. Em cartaz. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2012.
  3. Cidade de São Paulo. Lei nº 1.742 de 18 de setembro de 1913. São Paulo, 2013.
  4. Cidade de São Paulo. Parecer nº. 23 das comissões reunidas de justiça e finanças, 1924.
  5. Cidade de São Paulo. Parecer nº. 72 das comissões reunidas de justiça e finanças, 1924.
  6. Cidade de São Paulo. Resolução Secretaria Municipal De Urbanismo E Licenciamento – SMUL/FUNDURB Nº 1 de 26 de Fevereiro de 2021.
  7. Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. Roque de Mingo. São Paulo: Itaú Cultural, 2021.
  8. Fátima Antunes. A ‘Fonte Monumental’ da Praça Júlio Mesquita. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2012.
  9. Manoel de Brito. Fonte Monumental – o retorno do símbolo da memória paulistana. Manoel de Brito Fotografias, 2014.
  10. Elfi Kürten Fenske. Nicolina Vaz de Assis – a escultora da belle èpoque tropical. Templo Cultural Delfos, 2014.
  11. Luiza Franco. As histórias por trás do ‘cemitério de estátuas’ de São Paulo. São Paulo: BBC Brasil, 2020.
  12. Douglas Nascimento. Fonte Monumental. São Paulo Antiga, 2009.
  13. SIMIONI, A. P. C. Profissão Artista: Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras. 1ª edição ed. São Paulo, SP, Brasil: Edusp, 2019.
  14. Edison Veiga/Agência Estadão. Protegida por vidro, fonte será reaberta no centro de SP. Jornal O Estado de São Paulo, 2013.

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