Glória Imortal Aos Fundadores de São Paulo

Glória a quais fundadores, afinal?

Texto: Bruna Bacetti Sousa. Modelagem 3D: Beatriz Barbosa de Lima, David Atalla Aly, João Generoso Gonzales, Laura Sayuri de Haro, Nathan Lavansdoski Menegon. Pós-Produção: Luís Felipe Abbud, João Generoso Gonzales.

Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo foi o primeiro grande monumento da República em São Paulo, objeto de um concurso realizado em 1909. O monumento foi concebido como marco urbano fixando uma narrativa sobre o povoamento da cidade e também como uma homenagem aos jesuítas fundadores. A Comissão responsável pelo concurso, formada por importantes figuras políticas da época, já direcionava no edital a versão dos fatos históricos que deveria ser materializada na obra, reproduzindo um discurso autorizado sobre o período e promovendo sua adesão e aceitação ao imaginário popular como uma verdade oficial e absoluta. As representações do Padre José de Anchieta e de outras figuras religiosas consideradas centrais para a consolidação do povoamento foram classificadas como essenciais e indispensáveis à construção, reforçando o viés religioso que se queria comunicar e popularizar entre os cidadãos. A proposta vencedora foi a do escultor italiano Amedeo Zani, escolhida por aliar representação formal e estética monumentais, evocar importantes episódios históricos e destacar seus protagonistas.

A obra de Zani tem 25 metros de altura e divide-se em três partes. 1) Uma base de granito cinza que, segundo o próprio autor, deveria configurar ‘um amplo terraço que, contrariamente ao inveterado hábito de interdir o monumento da aproximação do público por meio de grades, será accessível…”, com suas quatro faces ornamentadas em baixos-relevo de bronze a uma altura favorável para fruição pública. Estão representadas: a primeira missa da vila celebrada pelo padre Manoel de Paiva, em 25 de janeiro de 1554 (data comemorada como o dia da conversão de São Paulo); a catequese dos indígenas pelo Padre Anchieta; a defesa do povoamento pelo cacique Tibiriçá; e a negociação de paz firmada entre Anchieta e Nóbrega e os índios Tamoios. 2) Uma coluna em granito rosa polido com alto-relevos em bronze representando o trabalho braçal de construção da cidade, realizado pelos indígenas e o controle/supervisão desses pelos jesuítas; e medalhões com perfis em bronze de autoridades como: Martim Afonso de Souza, Mem de Sá, Dom João III e o Papa Júlio III. 3) No topo do conjunto encontra-se uma figura feminina em bronze, alegoria à cidade de São Paulo coroando os ‘fundadores’.

A obra exalta a atuação missionária dos jesuítas, considerados responsáveis pela conversão dos indígenas em ‘bons selvagens’ através da catequese e, por esse motivo, enquadrados como agentes fundamentais no processo de fundação e consolidação da cidade assentada sob as bases do catolicismo. As figuras de Anchieta, homem europeu branco colonizador, e Tibiriçá, indígena convertido pela religião, refletem a ideologia da civilização versus a barbárie. Contrapõe-se a outra narrativa muito explorada nos monumentos da cidade, principalmente a partir da década de 1930, que pressupõe a mestiçagem das raças e a representação heróica do bandeirante como desbravador do território.

Projetado para integrar a reformulação do antigo Largo do Collegio – marco inicial da fundação da cidade onde foram implantados, em 1554, o primeiro edifício dos jesuítas – o monumento demorou quase duas décadas para ser inaugurado em decorrência da necessidade de demolição do edifício do Palácio do Governo ali instalado desde o século XIX. A total reconstrução do logradouro público aos moldes de como era na fundação da cidade, quatro séculos antes, gerou diversas polêmicas e conflitos de interesses que influenciaram na demora da instalação do monumento, concretizada apenas em 1925. Importante destacar que a nova edificação, simulacro do conjunto original em taipa de pilão, e portanto um ‘falso histórico’, só teria sua construção iniciada em 1953 já no contexto de preparação para as comemorações do IV Centenário da Cidade, em 1954.

Atualmente, durante as duas primeiras décadas do século XXI, o ‘Glória Imortal’ tem passado por um intenso processo de ressignificações. Em 2002, depois de 14 anos cercado por grades e afastado da fruição – extremo oposto do que intencionava seu idealizador – o monumento foi devolvido ao contato direto com o público. Em 2004, ano do aniversário de 450 anos da cidade, foi realizado um minucioso restauro que, em conjunto a outras ações de requalificação do seu entorno, promoveu a reintegração do monumento à cidade. Em 2007, durante a Virada Cultural, a intervenção ‘Glória às lutas inglórias’ da artista visual Nele Azevedo foi idealizada como um antimonumento ao obelisco. A partir de caixotes de feira cheios de frutas, construiu-se, ao lado do monumento na horizontal, o desenho de um grafismo de origem Guarani com as mesmas dimensões da obra de Amadeu Zani, criando pequenos pátios e espaços de convivência, propondo repensar os signos e sentidos daquela obra artística. A Jornada do Patrimônio – pelo Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) – tem proporcionado novos olhares ao monumento. Em 2019, durante uma expedição fotográfica pela área central da cidade, foram capturados momentos de apropriação no Pateo do Colégio por um grupo indígena. Já em 2020, uma performance de Body Paint intitulada ‘Patrimônio Vivo’ reuniu performers, artistas plásticos e músicos propondo instigar diferentes formas de entender e se afetar pela obra a partir de um novo olhar ao patrimônio.

Referências

  1. KUHN, J. C. S.; CYMBALISTA, R. O pátio do colégio em São Paulo entre 1889 a 1972: agentes, tensões e representações. URBANA: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, Campinas, SP, v. 6, n. 1, p. 740–757, 2014. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8635323. Acesso em 04 de ago. de 2021.
  2. UHLE, A. R. ‘Operários da memória: Artistas Escultores do início do século XX e o concurso do Monumento Glória Imortal Aos Fundadores De São Paulo’. Anais Do Museu Paulista: História E Cultura Material, vol. 23, nº 2, dezembro de 2015, p. 139-63. Disponível em: https://www.scielo.br/j/anaismp/a/xCYHpTqFHVTYqgzx7xjqKdh/abstract/?lang=pt.

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