Monumento a Carlos Gomes

Sinfonia em bronze no Anhangabaú

Marina Brandão.

Localizado ao lado do Teatro Municipal, o monumento a Carlos Gomes é um conjunto escultórico, composto por peças de bronze e mármore, que se une à escadaria da Praça Ramos e à Fonte dos Desejos. A obra, em homenagem ao compositor campinense Antonio Carlos Gomes (1836-1895), fez parte da profusão de obras instaladas na cidade para as comemorações do centenário da independência do país. Inaugurado em 12 de outubro de 1922, o monumento foi parcialmente financiado pela colônia italiana em São Paulo, incluindo personalidades como Francisco Matarazzo na comissão executiva para sua implantação. Carlos Gomes passou parte de sua vida morando na Itália e foi o primeiro brasileiro a ter suas obras apresentadas no Teatro alla Scala, em Milão. Essa forte relação do compositor com o país motivou o interesse da comunidade italiana paulista em homenageá-lo.

O conjunto escultórico foi responsável pela primeira ocorrência de ‘monumentos nômades’ na cidade de São Paulo. As obras Leão, Amor Materno e A menina e o bezerro, todas inauguradas em 1914, foram retiradas da região do Anhangabaú em 1922 para a instalação do monumento a Carlos Gomes, segundo tese de Thaís Waldman defendida na USP em 2018. A obra representa no seu platô superior, sentado, o compositor, em cima de um pedestal de pedra com os dizeres: ‘Ao grande espírito brasileiro que conjugou o seu gênio com a itálica inspiração / A colônia italiana do estado de São Paulo / No primeiro centenário da independência do Brasil / 7 de setembro de 1922’. Logo no nível abaixo, a República é homenageada representada pela figura de uma mulher que olha para frente sobre os dizeres ‘Ordem e Progresso’, guiada por quatro cavalos, no conjunto denominado Glória ao Brasil, situado sobre a chamada ‘Fonte dos Desejos’. Esta foi batizada assim em 1957 em cerimônia realizada pelo prefeito Adhemar de Barros, que despejou, na ocasião, água da Fontana di Trevi no local, conforme é descrito na placa instalada sobre a fonte. O conjunto conta, ainda, com cinco esculturas que representam alegorias das óperas de Carlos Gomes, outras duas em mármore que representam a Música e a Poesia, e dois conjuntos que simbolizam a Monarquia Italiana e a República Brasileira. Entre as curiosidades que circundam o monumento, merece destaque a ‘degola’ temporária do compositor. Após sua inauguração, em 1922, a semelhança entre as feições de Carlos Gomes com a do político José Gomes Pinheiro Machado, assassinado a facadas em 1915, virou alvo de comentários da mídia local e gerou desconforto geral do público. O fato levou o artista Luigi Brizollara (1868-1937), autor do conjunto, a refazer a peça, o que deixou Carlos Gomes sem cabeça no Anhangabaú durante o mês de janeiro de 1926, enquanto aguardava sua substituição.

Luigi Brizzolara, artista italiano, foi um dos ‘escultores viajantes’ europeus que frequentemente buscavam oportunidades de concurso de esculturas na América Latina, que explodiram na primeira metade do século nas cidades que se modernizavam ‘à européia’. Quando ficou em segundo lugar no concurso do Monumento à Independência, instalado no Ipiranga, o artista se aproximou de Afonso Taunay e passou a colaborar para a construção da narrativa sobre o imaginário bandeirante em São Paulo, materializada nas esculturas de Fernão Dias e Raposo Tavares, ambos instalados no Museu Paulista em 1922. Em 1924, Brizzolara esculpiu, em mármore, o monumento Anhanguera que atualmente situa-se em frente ao Parque Trianon. Destoando entre as homenagens bandeirantes de Brizzolara, chama atenção, no monumento a Carlos Gomes, a representação de um indígena: povo que figura entre as principais vítimas dos massacres protagonizados pelos personagens associados à construção da identidade paulista, representados pelo artista italiano. Com arco e flecha e adereços de penas, a alegoria da ópera O Guarani de Carlos Gomes, inspirado no romance de José de Alencar, chegou a ser chamado de ‘índio milanês do Sr. Brizzolara’, segundo Thaís Waldman. Trata-se de uma das poucas representações de indígenas em monumentos no espaço público de São Paulo que retrata um personagem da ficção: o indígena Peri, que no enredo é convertido ao cristianismo pelo pai de sua amada, Cecília.

Outras alegorias de óperas de Carlos Gomes, o Condor e Fosca se apoiam sobre o balaústre das escadas, projeto de Ramos de Azevedo, que compõem o conjunto. As peças em bronze ficam muito próximas aos transeuntes, o que é pouco comum para a maioria dos monumentos implantados à época. Segundo texto do Departamento do Patrimônio Histórico: ‘Quem desce a escadaria tem a impressão de que Condor lhe estende a mão, como num cumprimento. De tanto ser tocado, o bronze perdeu a pátina e São Paulo ganhou uma lenda: em visita à capital paulista, o viajante que tocar um dos dedos de Condor encontrará a sorte’. Ainda segundo o mesmo texto, o desgaste pelo toque na mão da peça ainda pode ser percebido, já que por respeito à essa tradição, o brilho não foi recomposto na restauração executada pelo DPH em 2001. Hoje em dia, o convite à interação se traduz nas selfies com o Condor e nas fotografias em redes sociais em que os visitantes mimetizam seu movimento dramático. Os mais ousados chegam a montar nos cavalos da República para o registro. O monumento também é usado por skatistas, frequentadores assíduos das escadarias do Teatro Municipal, que se apropriam dos degraus do conjunto para a realização de manobras. Há também quem colecione as moedas jogadas na Fonte dos Desejos pelos visitantes esperançosos. Entre outras apropriações, o conjunto já recebeu bóias e coletes salva-vidas (2007), saltos altos pendurados (2016) e fios de crochê (2020) como parte de intervenções artísticas realizadas no local.

Em 2017, o monumento a Carlos Gomes passou por obras de limpeza e ‘requalificação’, durante o primeiro ano do mandato do então prefeito João Dória (2017-2018). O evento de inauguração das obras teve direito a bandeiras da Itália e balões nas mesmas cores desta, em homenagem à participação da comunidade italiana nas obras de requalificação, a mesma que protagonizou a construção do monumento em 1922. Com a obra, as pixações existentes foram removidas e os chafarizes da Fonte dos Desejos voltaram a funcionar. O arco do Guarani, que tinha sido roubado, ganhou réplica e foi instalado. Mesmo sem as pixações, hoje ainda é possível ver em alguns pontos a diferença de tonalidade nas pedras: uma das camadas perceptíveis das diversas apropriações do monumento. Ainda sobre sobreposição de camadas, vale destacar que o Monumento a Carlos Gomes permanece como testemunha das sucessivas intervenções no Vale do Anhangabaú, que ganhou, em 2021, sua versão mais recente.

Referências

  1. Antonio Alexandre Bispo. São Paulo melodramático: a retórica encenatória do monumento a Carlos Gomes (1836-1896) de Luigi Brizzolara (1868-1937) nas suas inscrições em processos político-culturais ítalo-brasileiros. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira, n 162/3 2016.
  2. Universidade Estadual de Campinas. Warburg – Banco comparativo de Imagens.
  3. Secretaria Especial de Comunicação. Prefeitura entrega obras de recuperação da Praça Ramos de Azevedo. Cidade de São Paulo, 2017.
  4. Departamento do Patrimônio Histórico. Inventário de Obras de Arte em Logradouros Públicos da Cidade de São Paulo: Monumento a Carlos Gomes. Cidade de São Paulo, 2008.
  5. Miriam Escobar. Esculturas no espaço Público em São Paulo. São Paulo: Vega, 1998.
  6. G1. Virada terá esculturas com coletes salva-vidas e projeção de fotos na rua.Portal G1, 2007.
  7. Patrícia Leite. História Hoje: Estreia da ópera ‘O Guarani’ completa 146 anos. Agência Brasil, 2016.
  8. Douglas Nascimento. O Abandono do Vale do Anhangabaú. São Paulo Antiga, 2012.
  9. Thaís Chang Waldman. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2018.

Fotos

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