Caxias perto do céu e longe do povo
Texto: Bruna Bacetti Sousa. Modelagem 3D: Gabriel Paraizo Santos, Roberta Kimberly Calandrine Azevedo dos Santos, João Generoso Gonzales. Pós-Produção: Luís Felipe Abbud, João Generoso Gonzales.
Pacificador. Unificador. O ‘cidadão-soldado’ ideal. Esse conjunto de virtudes compunha a narrativa criada em torno da figura de Duque de Caxias que se buscava materializar através de um monumento de imensas proporções a ser instalado em praça pública no centro da cidade de São Paulo. A construção do Monumento a Duque de Caxias foi utilizada como estratégia do presidente Getúlio Vargas e do Ministério da Guerra durante o Estado Novo para estreitar laços com a importante – e muitas vezes, subversiva – capital paulista, objetivando aderir à cidade ideais caros ao governo central. O primeiro ponto a ser destacado do Monumento é a representação simbólica e política que sua idealização carregava, visando substituir no imaginário da população da capital a simbologia do bandeirante, angariar a simpatia das elites e das classes populares paulistas, legitimar o governo estadonovista na cidade e garantir o processo de unificação do território nacional.
Em 1940, foi assinado pelo presidente o decreto que instituiu a criação da Comissão Central Pró-Monumento Duque de Caxias, concretizando uma campanha iniciada no ano anterior a favor da criação de um monumento em homenagem a Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do exército brasileiro. O grande vencedor do concurso foi o escultor, à época já renomado, Victor Brecheret com seu projeto ‘Itororó A’, uma obra que viria a ter aproximadamente 48 metros de altura, equivalente a um prédio de 15 andares. Seu pedestal em granito esculpido com altos e baixos relevos atinge mais de 25 metros e a estátua do Duque montado em seu cavalo, com sua espada em riste, conta mais de 16 metros – consagrando a obra como a maior escultura equestre do mundo até os dias atuais.
Ao refletir acerca da visão que o artista imprimiu sobre o homenageado na obra de arte, percebe-se uma adesão incondicional de Brecheret ao discurso oficial forjado em torno do Duque de Caxias e sua total ausência de distanciamento crítico sobre a figura do militar e o que ela representava, principalmente sobre suas contradições. Ao reafirmar a ideia mítica criada e difundida pelos setores militares sobre o Duque e representá-lo como um homem sóbrio, líder que guiou com valentia as tropas brasileiras durante sua atuação nas campanhas do exército imperial, o escultor ajuda a apagar e jogar para o esquecimento as atuações agressivas do militar nas repressões às diversas revoltas liberais separatistas que ocorreram em território nacional – como a Balaiada no Maranhão e a Farroupilha no Rio Grande do Sul – e também em confrontos além das fronteiras brasileiras, como na Guerra do Paraguai.
Neste mesmo período, Brecheret foi responsável pela idealização do Monumento às Bandeiras, popularmente conhecido como ‘empurra-empurra’, instalado nas proximidades do Parque Ibirapuera como parte das comemorações do IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo a serem realizadas em 1954. Importante destaque deve ser dado aos imbricamentos entre essas duas obras artísticas desenvolvidas, em parte, simultaneamente. Enquanto o Monumento às Bandeiras é um dos mais populares e comentados da cidade, o Monumento a Duque de Caxias segue pouco conhecido e apropriado pela população, apesar de seu gigantesco porte. Outro ponto de comparação reside na integração dos monumentos com sua paisagem envoltória. Se o Monumento às Bandeiras é um bom exemplo de integração urbanística entre obra e meio, o outro se mostra muito prejudicado neste aspecto, principalmente, por se distanciar em mais de 20 metros do nível do solo e da fruição pública, além de ser encoberto pelas copas de árvores e pelos altos edifícios que o rodeiam. Por fim, vale pontuar que uma das complicações para a entrega do Monumento a Duque de Caxias relaciona-se diretamente à construção do Empurra-empurra e à priorização do financiamento deste último para as festividades do IV Centenário. Logo, percebemos que, mesmo conseguindo certa atenção e aderência da população paulista, o ufanismo nacionalista ainda era preterido em relação à valorização do orgulho e das referências locais ligadas ao bandeirantismo.
Por sua vez, o local de implantação do Monumento a Caxias constituiu o maior impasse em seu desenvolvimento, resultando em quase 15 anos de atraso entre a finalização e a inauguração da obra. A intenção inicial de Brecheret era que o monumento fosse instalado em um local amplo onde pudesse ser observado por diversos ângulos e patamares, sugerindo a Praça das Bandeiras no Vale do Anhangabaú. Entretanto, este logradouro foi barrado pela Comissão Pró-Monumento dada a forte ligação do local com período áureo da oligarquia cafeeira paulista e da hegemonia política do Estado de São Paulo durante a República do Café com Leite, fato que se contrapunha à instrumentalização do Monumento como símbolo unificador ambicionado por seus proponentes. A Comissão, que contava com o engenheiro e ex-prefeito Francisco Prestes Maia, defendia em contrapartida a implantação no Largo Paissandú prevendo a demolição da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e a reformulação da área como parte do projeto de remodelação viária da região central já iniciado anos antes no contexto do Plano de Avenidas. Após protestos e grande resistência da Irmandade negra, decidiu-se pela instalação do Monumento a Caxias na exígua Praça Princesa Isabel, a qual passou por um projeto de reurbanização e ampliação de modo a se adequar às dimensões e atributos estéticos que o imponente monumento demandava.
A obra artística foi finalmente inaugurada no ano de 1960 sem ter desenvolvido qualquer relação com a Praça e o entorno durante seu processo de elaboração. Esse distanciamento simbólico se mantém até os dias atuais, 60 anos depois, estando o monumento quase esquecido no meio de uma das regiões mais socialmente vulneráveis da cidade de São Paulo, a chamada ‘cracolândia’.
Em 1991, o monumento sofreu um ato de vandalismo por parte de um soldado do exército que protestava por melhor remuneração. A explosão de uma bomba atingiu o grupo escultórico que retrata a Batalha de Itororó, danificando-o. Já em 2021, no contexto da pandemia do coronavírus, o Monumento a Caxias foi utilizado como cenário para a fotomontagem da artista Isabela Vida Moreno que propôs uma dupla reflexão crítica, tanto acerca dos monumentos da cidade quanto da realidade pandêmica do país.
Referências
- Ana Carolina Fróes Ribeiro; Fábio Lopes de Souza Santos. Tradição, nacionalismo e modernidade: o monumento Duque de Caxias. 2006.Universidade de São Paulo, São Carlos, 2006.
- Fabrício Santos. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos como Monumento do Povo Negro na Cidade de São Paulo. IV Simpósio Brasileiro Online de Gestão Urbana. 2020. Unesp.
- Site Folha de São Paulo. Acervo Folha. ‘Monumento a Duque de Caxias’.
- Site Obras de Arte em Logradouros Públicos, Dep. de Patrimônio Histórico de São Paulo, artigo ‘Monumento a Duque de Caxias’.
- Site São Paulo Antiga, artigo ‘Monumento a Duque de Caxias’.