Borba Gato

Borba Gato: a estátua mais cafona e polêmica da cidade

Paula Janovitch.

A estátua do Borba Gato sempre foi amada por uns e detestada por outros. Situada na confluência das avenidas Santo Amaro e Adolfo Pinheiro, foi inaugurada em 27 de janeiro de 1963.

O monumento foi concebido pelo escultor Julio Guerra (1912-2001) para as comemorações do IV Centenário de Santo Amaro. Nas primeiras décadas de sua implantação, sofreu uma série de críticas que sequer se aproximavam dos debates que hoje a estátua suscita, vinculados ao seu comprometimento histórico relacionado aos bandeirantes que capturaram, escravizaram e mataram indígenas e quilombolas. De modo contrário, nos anos de 1950, a mitologia bandeirante estava no seu auge e fazia parte da construção de uma identidade paulista.

Conforme explica a pesquisadora Márcia Maria da Graça Costa (2017): ‘A cidade de 1954, em todos os aspectos sociais, era resumida ao civismo ou à identidade bandeirante. A promessa de prosperidade que o crescimento urbano iria proporcionar, sendo o IV Centenário o evento programado para celebrar esse momento, produziu uma utopia para São Paulo, enraizada na escrita de sua memória histórica…’.

Para compreendermos esta representação romantizada do bandeirante, basta olharmos as publicidades de época ou outros dos monumentos implantados no IV Centenário de São Paulo. Tal representação vincula-se às expectativas da cidade nos anos de 1950 e mostra-o como um ser heróico, conquistador e desbravador do sertão. O bandeirante era o passado, mas naquele momento também representava o futuro de São Paulo moderno e industrializado.

Não é de se espantar que, em 1963, a antiga cidade de Santo Amaro, que tornou-se bairro a partir de 1932, escolhesse homenagear a figura de bandeirante que tinha suas origens naquele território ao comemorar o seu IV Centenário.

Julio Guerra era morador do bairro e amante das histórias de Santo Amaro antiga. Em depoimento, comentou que foi às ruas conversar com a população antes de criar a estátua para aproximar ao máximo a concepção do monumento e as expectativas dos santo-amarenses. Disse ele que o colorido da estátua, tão criticado na imprensa, era uma forma de dar mais colorido à paleta cinza da cidade de São Paulo:

‘Fiz o Borba Gato diferente, não parece túmulo e não tem pedestal enfeitado. E quando fazia, esquecia do Policleto e lembrava do Aleijadinho, e dos bonecos da arte popular. Depois de pronto eu gostei, e o povo da minha terra também gostou. Fizeram festa, e os romeiros recordaram o Santo Amaro das chácaras e das poesias. Muitos olhos umedeceram. E os letrados, que Leonardo já ironizava, xingaram o Borba Gato de bonecão, boi parado, monstromento. E que era feito de pastilhas. Mas não é. Ele é feito de pedras e mármores’ (Julio Guerra).

O monumento de 10 metros de altura, com um pedestal de granito de 2 metros, tem suas vestes e corpo repleto de pedrinhas coloridas de basalto. Por dentro, o monumento é sustentado por antigos trilhos de bondes retirados da avenida Santo Amaro, bem a contento da maneira como o escultor desejava resgatar e dar permanência à história de Santo Amaro em suas diversas obras presentes no bairro.

Cerca de 25 metros distante da estátua, estas histórias de Santo Amaro são recontadas em quatro painéis de mosaicos de pastilhas. Conforme referências da Divisão de Preservação do Patrimônio Histórico de São Paulo , os painéis evocam personalidades e fatos ligados ao bairro. Anchieta e Caiubi com o brasão de Santo Amaro; o rio Jurubatuba; João Paes e Suzana Rodrigues doando à nova capela a imagem de Santo Amaro; os primeiros colonos alemães; a primeira fábrica de ferro da América do Sul; o poeta Paulo Eiró; e o Padre Belchior de Pontes.

Logo, o monumento caiu no gosto popular e chegou a se tornar um dos cartões postais da cidade, associado ao bairro de Santo Amaro. Porém, bem diferente da popularidade que adquiriu nas ruas, Borba Gato sempre recebeu narizes franzidos dos críticos de arte. De estética duvidosa, o ‘coiso de Santo Amaro’, ‘trambolhão’ da avenida Adolfo Pinheiro, ‘gigantão’, arremedo de pioneirismo de ‘pop art’, estilo caipira, ‘monumento que causa vergonha para a cidade’.

Em novembro de 2007, o Sesc Santo Amaro, que fazia uma exposição sobre a obra de Julio Guerra, ampliou a exibição do escultor. Na ocasião, abriu-se uma discussão sobre o Borba Gato, monumento que ficou associado ao escultor pela divisão de opiniões desde sua implantação.

Como seria fazer o Borba Gato desaparecer do espaço público? Com esta questão, o Sesc de Santo Amaro empacotou o Borba Gato num tipo de caixa de madeira forrada com lona que servia de base para que imagens da região fossem sobrepostas em suas quatro faces. Para quem passava de carro, a impressão era, de fato, que o monumento havia desaparecido. Ao mesmo tempo, um grupo de atores contratados pelo Sesc espalhou dois tipos de boato: um de que a estátua havia sido roubada e outro de que ela fora depredada. Um site do bairro topou participar do engodo e divulgou as notícias falsas. Ao mesmo tempo, foi sugerido que as escolas do bairro organizassem visitas ao monumento ‘desaparecido’ e discutissem sua presença/ausência no espaço público. No final do jogo, além de ampliar as discussões sobre o monumento, revelou-se a farsa e o monumento foi desencaixotado.

Um ano depois do ‘desaparecimento’ da estátua, mais uma vez as críticas estéticas ampliaram o debate sobre o monumento. Numa proposta iconoclasta no aniversário da cidade de São Paulo, estilistas famosos foram convidados a desenhar novos figurinos para o Borba Gato: ‘ Estilistas criam novos looks para o Borba Gato: profissionais aceitaram o desafio e desenharam roupas para o polêmico monumento .’ Vestimentas casuais, substituições bem humoradas dos pesados calçados por botas de plástico, roupas de jovens colocaram a memória do monumento em movimento. Ou ainda, burcas que poderiam ser mantilhas típicas do século XVII, da época das bandeiras, atualizadas na estampa do piso do Estado de São Paulo.

Nos anos recentes as críticas mudaram de tom. Em 19 de abril de 2008, um grupo de ativistas realizou no monumento uma série de reflexões sobre ‘as nossas heranças’ às quais chamaram o ato de ‘Julgamento do Borba Gato’. Intervenções artísticas, ativismos , poesias, abordagens na rua, pichações, panfletagens e lambes com a figura do bandeirante. Todos esses disparam os novos questionamentos e intervenções que deslocam o foco das críticas da arena, até então estética, para a problematização da mitologia bandeirante.

Borba Gato vem mobilizando cada vez mais a sociedade. Ano a ano, sobre seu corpo ou no espaço público onde está instalado, as intervenções e ativismos ganham novos protagonistas oriundos da sequela de um passado que ainda hoje torna o monumento um lugar de memória difícil por sua temática bandeirante. Em 2020, quando a morte de George Floyd provocou manifestações antiracistas e envolveu a derrubada de uma série de monumentos no mundo todo, o Borba Gato foi considerado um dos monumentos mais ameaçados.

No dia 24 de julho de 2021, enquanto na av. Paulista ocorria mais uma manifestação contra o governo Bolsonaro, um grupo intitulado ‘Revolução Periférica’ se manifestou por outra via. Eles fecharam a avenida Santo Amaro, cercaram o monumento e colocaram pneus no pedestal. Atearam então fogo na estátua e estenderam uma bandeira/legenda da ação que disparou em todos os meios de comunicação: ‘ Revolução Periférica: a favela vai descer e não vai ser Carnaval’.

Após o ato e a prisão de um dos participantes, o debate esquentou na mídia. Borba Gato mobilizou a opinião pública e seu corpo nos provocou a pensar o que fazer com estes monumentos de memória difícil presentes na cidade.

Nas palavras de Rogério Brandão, jornalista e historiador na live do programa Provocação Histórica: ‘no corpo do Borba Gato a memória é passado e é presente. Fala do que aconteceu, mas também das chagas e as feridas abertas de uma sociedade desigual. Talvez esta chama no Borba Gato nos ajude a pensar o presente, já passou o tempo de reconhecer sua ferida para poder curá-la’.

Borba Gato, o bagulho maravilha, desde sua instalação no espaço público se mantém na pauta do dia.

Referências

  1. Departamento do Patrimônio Histórico. Inventário de Obras de Arte em Logradouros Públicos da Cidade de São Paulo: Borba Gato. Cidade de São Paulo, 2008.
  2. Live. ANPUH. O debate sobre as estátuas e a criminalização dos movimentos sociais. 03 ago. 2021
  3. Márcia Maria da Graça Costa. Lugares de memória do bairro de Santo Amaro: a estátua do Borba Gato. Dissertação para obtenção do título de mestre em Ciências Humanas/UNISA. São Paulo, 2017.
  4. Douglas Nascimento. Borba Gato. São Paulo Antiga, 2012.
  5. Rogério Jordão, Passado escravista que o mar não levou. Piaui. 12 fev. 2021
  6. Thaís Chang Waldman. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 2018

Fotos

Imagens relacionadas

Deixe um comentário